A raiva está presente em praticamente todos os conflitos. Se observarmos bem, ela é despertada em nós inúmeras vezes ao dia, ainda que em pequenas doses. Pense em quando alguém passa a sua frente numa fila ou fecha seu carro no trânsito ou quando você se percebe criticado no trabalho…
Sabemos que a raiva em si não é ruim. Muitas mudanças sociais e pessoais nascem da raiva canalizada para um propósito. A maioria das pessoas que se dedica a lutar contra injustiças ou defendem uma causa coletiva relevante o fazem porque têm raiva:
“Sentimento de raiva é o principal motor para o ativismo climático, aponta novo estudo
(…)
Um novo estudo publicado na revista Global Environmental Change e realizado por um trio de psicólogos do Centro de Pesquisa Norueguês e do Centro Norueguês para Transformação do Clima e Energia da Universidade de Bergen mostrou que esse sentimento [raiva] é o principal motor para que pessoas engajem ativamente em ações em prol do planeta e no combate às mudanças – seja pressionando governos, líderes ou indústria.
(…)
A emoção mais provável e citada com mais frequência como motivadora do ativismo foi a raiva, sete vezes mais do que a esperança – que ficou em segundo lugar[1] (…)”.
A questão, portanto, não está na raiva em si, mas nas atitudes que temos a partir dela, quando não conseguimos nos gerenciar. Especialistas na área da psicologia comportamental, entre outros, indicam algumas estratégias para navegar a raiva. Eu lanço mão de várias quando meu “raivômetro” atinge os picos ou mesmo preventivamente. E, ainda assim, dou vários tropeços por aí.
Meu foco nestas breves linhas não são as estratégias para gerenciamento de emoções, mas discutir a raiva no contexto dos conflitos em geral. Sob esta perspectiva, a raiva tem uma função vital e muito benvinda. Ela opera como um sinalizador da existência de um incômodo relevante, uma espécie de alarme pessoal. Aliás, conflitos em si também podem ser vistos como sinalizadores. Ambos – Raiva e Conflito – indicam que algo precisa ser esclarecido ou alterado para a volta da harmonia.
Em se tratando de conflitos, a raiva se torna problemática quando não são canalizados tempo, energia e recursos pessoais para “decifrar” os processos internos que deram origem ao sofrimento. Sim, porque a raiva dói. É o que acontece em muitos conflitos duradouros, em que as pessoas se veem prisioneiras da própria raiva, tomadas e paralisadas por ela. A raiva pode aprisionar mais que o amor, segundo psicanalistas como Sandor Ferenczi[2].
Em situações de conflito, antes que soluções concretas possam começar a se desenhar, a raiva PRECISA ser “processada” internamente. Por “ser processada” me refiro a aprofundar a pesquisa sobre a necessidade humana não atendida por trás da manifestação da raiva.
Uma barreira para as pessoas realizarem esse tipo de autorreflexão decorre da dificuldade de identificar, reconhecer e até nomear a raiva. Por razões culturais, fomos ensinados(as) que raiva é uma emoção negativa. Basta refletir sobre quantas vezes você presenciou em ambientes corporativos alguém dizer algo como “vamos fazer uma pausa, pois estou sentindo raiva agora?”. Outra evidência da nossa relação de negação com a raiva é justamente as pessoas tenderem a responder com um sonoro “não” à pergunta “você está com raiva?”.
A segunda barreira à autorreflexão aprofundada sobre a raiva experimentada é que, em conflitos, geralmente (embora nem sempre), a raiva está apontada para o outro, isto é, para a pessoa com quem se está em conflito. Ou seja, a raiva desvia o foco de nós mesmos(as).
Ocorre que, embora o estímulo externo desencadeador da raiva (gatilho) possa ser atribuído ao outro, a causa raiz da raiva está em nós (e não nas atitudes das outras pessoas). Ela se revela através dos nossos pensamentos.
Marshall Rosemberg, em seu livro “O surpreendente propósito da Raiva”[3] explica que “entre o estímulo [a atitude do outro] e a raiva há sempre algum processo de pensamento” que obedece a uma estrutura clássica de imputar erro a alguém. Trata-se daqueles típicos pensamentos, geralmente em fluxo, que povoam a mente quando sentimos raiva: “isso não é justo”, “isso não é modo de tratar os outros”, “ele(a) é grosseiro(a)”, “ele(a) não podia ter feito isto”.
Esse tipo de articulação mental deriva de julgamentos individuais sobre certo ou errado, bom ou ruim, justo ou injusto (a raiva não enxerga meio termos, nem costuma ter dúvidas) ou de expectativas criadas a respeito das atitudes desejáveis da outra pessoa. Some-se, ainda, que passamos a perceber a pessoa a quem nossa raiva se dirige como um obstáculo ao atendimento das nossas necessidades, objetivos ou expectativas. E, como agravante, se eu penso que é a outra pessoa que está me causando raiva, então tenho desejo de punição.
Porém, como antecipado, o caminho para resolução do conflito sugere a direção exatamente oposta ao que normalmente fazemos quando sentimos raiva: inicia-se por retirar o foco do outro e se conectar consigo. Segundo Rosemberg, na obra acima citada, quando entramos em contato com as nossas necessidades não atendidas, tiramos o foco do outro – e, portanto, da própria raiva.
No caso de mediações de conflito, boa parte do trabalho do mediador consiste em ajudar as partes a realizarem este redirecionamento do outro para si, antes de conseguirem conversar sobre possíveis soluções para o conflito mediado.
A mudança de foco permite enxergar a causa-raiz da raiva, isto é, a informação útil para a solução da questão. Essa informação útil, antes camuflada pela intensidade da raiva, é a necessidade humana mais profunda que não foi atendida ou foi postergada ou se encontra de alguma forma ameaçada. Tenho raiva porque para mim é importante ser ouvido (e meu chefe me interrompe a cada duas palavras), tenho raiva porque tenho necessidade de me sentir pertencente e de participar (e não me chamaram para a reunião da minha área). Tenho raiva porque estou cansado, preciso dormir, e esta pessoa está atrasando minha ida para casa.
Minha experiência pessoal e como mediadora é de que nem sempre é fácil encontrar a necessidade submersa pelo turbilhão emocional da raiva. No meu caso, dependendo da intensidade e do contexto, às vezes preciso de alguns dias para “decifrar” aquilo que está sendo negligenciado que me faz sentir raiva. Apesar disso, vale muito à pena, tanto do ponto de vista do meu desenvolvimento pessoal, quanto no diálogo com a outra pessoa.
A tomada de consciência sobre os próprios sentimentos e necessidades propicia que a linguagem do conflito se altere da acusação ou crítica (pouco efetiva) para a efetiva negociação de soluções que contemplem as necessidades não atendidas. No caso concreto de um conflito, representa, por exemplo, passar de uma comunicação que costuma se iniciar com um padrão de julgamento ou acusação – “você não tem a menor consideração; como pode marcar reunião de área na hora que sabe que eu não posso?” – para algo como “eu tenho necessidade de me sentir parte do grupo, e, por isso, participar das reuniões da área é importante para mim. Queria propor uma nova combinação sobre os horários das reuniões”. A partir da alteração da linguagem, toda a dinâmica do conflito se altera. A diferença crucial entre uma e outra linguagem é que, na primeira, o resultado tende a ser o da escalada do conflito, enquanto, na segunda, a possibilidade de se encontrar uma solução satisfatória é substancialmente maior.
De uma maneira esquemática, as etapas se desenvolvem da seguinte forma:
À medida que investimos em aprendizado e autodesenvolvimento, podemos melhorar nossa capacidade de transformar raiva em informação útil para uma negociação saudável que culmine com o atendimento dos nossos objetivos e necessidades. Podemos aprender com nossas experiências passadas, com nossos padrões de raiva já mais ou menos conhecidos, podemos adquirir o hábito de nos observar melhor, e procurar conscientemente realizar as etapas referidas por Rosemberg. Meu convite a quem lê estas linhas é experimentar o surpreendente processo de transformar raiva em informação útil para si próprio(a).
[1] https://umsoplaneta.globo.com/clima/noticia/2023/08/25/sentimento-de-raiva-e-o-principal-motor-para-o-ativismo-climatico-aponta-novo-estudo.ghtml – último acesso em 23 de setembro de 2023
[2] Conforme citado pelo psicanalista Daniel Kuppermann no podcast “Meu Inconsciente Coletivo”, episódio “Por que escondemos nossa Raiva?”, de 10 de março de 2023.
[3] Rosenberg, Marshall B., “O surpreendente Propósito da Raiva – indo além do controle para encontrar a função vital da raiva”. São Paulo, Palas Athena, 2019