Médicos(as) e profissionais da saúde em geral costumam relatar que uma das vivências fundamentais para sua formação ser paciente em um hospital por alguns dias: estar do outro lado da cena; perceber que, para um(a) paciente, minutos de espera viram horas; sentir-se desamparado(a) e dependente do cuidado de pessoas desconhecidas.
Na mediação e em muitos outros ofícios, também não há melhor exercício do que a troca de papéis. Por isso, recomendo e pratico simulações de casos.
Em uma simulação recente, “virei diretora” de uma distribuidora de artigos para cabelos, envolvida em um conflito a respeito de um contrato de distribuição. Do outro lado, a “CEO” do fabricante ‒ educada, porém certeira ‒ me deu algumas “cutucadas”. Revidei, tal como costuma acontecer entre pessoas em conflito. Minhas sensações essenciais, naquele cenário, eram as de impaciência, impotência e, especialmente, de insegurança.
Assim como na experiência de ser paciente, tomar parte em uma mediação pode ser inicialmente desconfortável: o desconhecimento do processo, a espera pela vez de falar, a escuta, o incômodo ‒ muitas vezes profundo ‒ de interagir com quem se está em conflito…
Como na relação médico-paciente, a chave para a alteração dessa condição de desconforto é a Confiança. Até que o ambiente de confiança seja plenamente estabelecido, todas as partes se sentem inseguras em algum nível, inclusive os(as) próprios(as) mediadores(as).
A construção da confiança no processo de mediação leva algum tempo. Autores de Herramientas para Trabajar en Mediación[1], Francisco Diez e Gachi Tapia tratam detidamente do tema e, em breve resumo, duas ideias sobressaem. A primeira, a de que a construção de confiança é um processo contínuo que vai se estabelecendo e consolidando ao longo de toda a duração da mediação. A segunda, a de que, em mediação, a confiança tem quatro dimensões, que emergem quase sempre de maneira sucessiva, na seguinte ordem: (1) confiança no mediador; (2) confiança no processo de mediação; (3) confiança das partes em si mesmas; (4) confiança das partes umas nas outras, ainda que seja apenas a confiança mínima de que o outro cumprirá o que vier a ser acordado.
Parece intuitiva a sucessão acima aludida, observada na vasta experiência de Diez e Tapia. Confiar no mediador e no processo são naturalmente as etapas iniciais; por sua novidade, requerem algum tempo e disponibilidade interna. Sabemos que, em geral, as pessoas chegam céticas à mediação ‒ já tentaram soluções que não prosperaram, conversas não produtivas já ocorreram. Muitas vezes estão cansadas, desconfiadas, reativas. Quase sempre é a primeira experiência delas numa mediação. Tampouco surpreende que a última etapa seja a de conseguir confiar na outra parte. Especialmente em mediações que envolvem relações de longo prazo, quebras de confiança recíprocas podem já ter ocorrido – ou terem sido percebidas como tal. Natural imaginar que esta seja a derradeira etapa.
Diez e Tapia, no entanto, enfatizam que a dimensão mais complexa e trabalhosa no que respeita essa construção é a confiança das partes em si mesmas. A princípio, trata-se de informação desconcertante; afinal, a confiança em si é a única que não depende em nada da atuação de terceiros.
Ocorre que, um dos efeitos invariáveis dos conflitos destrutivos é a sensação de impotência experimentada pelas partes. Tal sensação, por sua vez, se materializa na diminuição da energia, no desânimo e pessimismo em relação à própria habilidade para conversar produtivamente e construir soluções sustentáveis.
O restabelecimento da autoconfiança é de tal forma central para a mediação de conflitos que uma de suas escolas – a Mediação Transformativa – a concebe como um dos dois objetivos propriamente da mediação (usualmente descrito como “fortalecimento” ou “empoderamento”), sendo o segundo objetivo o reconhecimento da pessoa com quem se estabeleceu o conflito.
Seja como objetivo ou como meio, a autoconfiança é o pressuposto essencial para o desfecho positivo do processo de mediação porque permite que as partes compreendam mais claramente seus interesses e suas necessidades, percebam-se capazes de comunicar com clareza tais interesses e necessidades, consigam ouvir com alguma abertura, tomar consciência dos recursos à sua disposição e, ao final, avaliar as opções de solução, decidindo os próprios rumos.
A boa notícia é que o incômodo aos poucos dá lugar à confiança, por meio do próprio processo facilitado pelo(a) mediador(a), em que se estabelece um verdadeiro ensaio das possibilidades futuras de interação entre as pessoas em conflito. Neste sentido, especialmente nas relações que necessariamente continuarão a existir após o conflito (equipes de trabalho, ex-casais, irmãos…), a mediação funciona como uma oportunidade de redefinição da forma com que as partes pretendem passar a se relacionar.
Recomendo a todos que chegam à mediação, em especial àqueles que estão tendo seu primeiro contato com o procedimento, uma certa dose de paciência e determinação para conviver transitoriamente com o desconforto e a insegurança. Do desconforto das primeiras sessões de mediação serão construídos, passo a passo, os alicerces de confiança que conduzirão a um eventual acordo satisfatório e sustentável no tempo. E, assim, todos(as) voltam a ter as rédeas das próprias vidas no que se refere ao conflito em questão.
[1] Herramientas para Trabajar en Mediación (tradução livre: Ferramentas para se Trabalhar em Mediação), Buenos Aires, Editorial Paidós, 1999, pags. 41 e seguintes.
